Trajetórias interconectadas: diretora relata criação da Agência de Inovação e relação com a FAI

SEGUNDA-FEIRA, 2 DE DEZEMBRO DE 2024 Trajetórias interconectadas: diretora relata criação da Agência de Inovação e relação com a FAI

Mulher, pesquisadora, gestora, mãe e docente no Departamento de Engenharia de Produção da UFSCar. Ana Lúcia Vitale Torkomian, atual vice-presidenta e futura presidenta (a partir de 2025) do Fórum de Inovação e Transferência de Tecnologia (FORTEC), foi a primeira diretora da Agência de Inovação (AIn) da UFSCar, além de ocupar em paralelo a diretoria executiva da Fundação de Apoio Institucional ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FAI UFSCar). Nesta entrevista, realizada por ocasião das comemorações dos 15 anos da Agência, ela fala sobre São Carlos, a vocação do município para a inovação tecnológica; relembra momentos da própria história e estabelece conexões com o movimento que acontecia no Brasil e na própria Universidade; destaca iniciativas empreendedoras da UFSCar e relata como a Fundação foi importante para a estruturação da Agência de Inovação.

Pergunta: Professora, o seu envolvimento com a cultura de inovação é um fato, especialmente, na UFSCar. Para que nossas leitoras e leitores compreendam como se dá este processo, eu gostaria que a senhora nos contasse parte de sua trajetória. 
Ana Torkomian: Eu sou filha da UFSCar. Eu entrei aqui, em 1982, no curso de Engenharia de Produção, e formei-me em 1987. Eu já estava fazendo o meu trabalho de conclusão de curso e havia um movimento - estamos falando do final da década de 1980 - de estímulo à criação para o que, à época, chamávamos de empresas de base tecnológica. Estávamos tentando reproduzir, aqui no Brasil, o sucesso que estava acontecendo nos Estados Unidos, na Europa e no Japão. Então, o que se buscava era o estímulo à criação de empresas inovadoras com base no conhecimento científico e tecnológico produzido em institutos e universidades, como na Universidade de Stanford e no MIT [Instituto de Tecnologia de Massachusetts], a partir da oferta de apoio, infraestrutura e atração de capital de risco para essas empresas poderem se desenvolver. 

Pergunta: Então, o início deste movimento em prol de uma cultura da inovação data, aqui no Brasil, nos anos 1980?
Ana Torkomian: O que vamos ter, na verdade, é uma iniciativa sistêmica a partir dos anos 1980. Em 1984, o governo federal, daqui do Brasil, criou um programa que vislumbrava a criação de fundações, de parques, tentando reproduzir o modelo norte-americano, de estruturas que, em um primeiro momento, seriam uma espécie de incubadoras e depois deveriam se tornar um parque tecnológico para estimular a criação de empresas de base tecnológica. O governo federal escolheu cinco cidades em todo o país para implantar essas fundações, de direito privado, sem fins lucrativos, com a participação dos agentes locais, considerados importantes para o empreendimento. E aí, uma das cidades escolhidas foi São Carlos. A outra foi Campina Grande, na Paraíba - o presidente do CNPq, naquela época, era de Campina Grande ...; nas outras três cidades, os projetos não foram para frente. As estruturas que perduraram a partir deste movimento estão aqui, em São Carlos, com o ParqTec de São Carlos, e em Campina Grande, na Paraíba. Nós, da UFSCar, juntamente com a USP, com a Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária] e com a Prefeitura, participamos da criação da Fundação ParqTec. E, no mesmo ano, também em 1984, o Governo do Estado de São Paulo escolheu outras cidades, para implantar incubadoras de empresas, com o estímulo à criação de empresas de base tecnológica, em regiões que tivessem um perfil, uma vocação para gerar essas empresas. E São Carlos, mais uma vez, foi um dos municípios do estado escolhidos para incrementar as práticas de desenvolvimento tecnológico.

Pergunta: São Carlos é, portanto, pioneira?
Ana Torkomian: Sim, sim. Essas duas iniciativas - do governo federal e do governo estadual - são as primeiras iniciativas do gênero na América Latina. Eu falo isso com muito orgulho e uma questão muito interessante, muito curiosa: no início, a sede do ParqTec funcionava numa casa alugada e essa casa fica bem próxima da maternidade. No andar inferior funcionava a recepção, o showroom - naquela época, chamávamos de showroom - e na parte de cima, onde eram os quartos (o imóvel era uma casa), ficavam as empresas que estavam incubadas. Já na iniciativa fomentada pelo governo do estado, houve a iniciativa de construção do prédio para abrigar uma incubadora. Bom, e eu acompanhei tudo isso porque esse movimento era o meu trabalho de conclusão de curso na graduação. 

Pergunta: Então, a sua chegada a este contexto é pela graduação?
Ana Torkomian: Isso, eu estava terminando a minha graduação e todo esse movimento era o objeto do meu trabalho de conclusão de curso. Foi tudo muito legal. Por isso, consigo compreender, por exemplo, por que a cidade de São Carlos foi um dos municípios escolhidos pelo programa federal e pela iniciativa estadual. Somos uma cidade pequena, mas que já possuía o campus da USP, com forte atuação na área tecnológica; a UFSCar, com forte atuação na área tecnológica a partir do curso de Engenharia de Materiais e outras áreas também; e as unidades da Embrapa. Então, todo este cenário, todo este contexto, apontaram (e apontam) favoravelmente para São Carlos. Ou seja, uma cidade que tem vocação para a criação de estruturas de base tecnológica. 

Pergunta: Um ambiente muito propício para a inovação…
Ana Torkomian: Exatamente. Um ambiente já institucionalizado, capaz de consolidar uma vocação existente a partir de instituições muito fortes, como a UFSCar, a USP e a Embrapa. 

Pergunta: E como é que compreendemos a atuação da pesquisadora Ana Torkomian neste contexto?
Ana Torkomian: Bem, eu continuei estudando este fenômeno; fiz meu mestrado na USP, em São Paulo; estudei estruturas de parques tecnológicos; estudei o conceito de polo, um conceito para definir uma estrutura mais regionalizada, que envolvem as instituições, o parque, as incubadoras. Ou seja, o polo envolve o que temos numa mesma região. Eu estudei tudo isso no meu mestrado, em São Paulo. Em 1993, eu entro aqui, na UFSCar, como docente, na graduação. Eu estava fazendo o meu doutorado, na USP, em São Paulo, estudando a gestão da tecnologia e da inovação. E logo que entro aqui, a Reitoria - o reitor era o Newton Lima - estava muito interessada, muito preocupada com as interações entre a universidade e a sociedade. E, naquela época, foram criados cinco núcleos, chamados núcleos de extensão UFSCar-Sociedade (Empresas, Saúde, Sindicato, Cidadania e Município). Daí, fui convidada para assumir o núcleo UFSCar-Empresa, o Nuemp, em 1996, que pode ser considerado o primeiro passo para uma série de políticas de inovação no âmbito da Universidade. E uma curiosidade é que esse núcleo foi gerado juntamente com a minha filha (risos)...

Pergunta: E como foi este início?
Ana Torkomian: Era tudo novo e, portanto, não havia pessoal especializado. Eu coordenava o núcleo e contava com o suporte da minha equipe, formada por bolsistas. Mas já naquela época, fomos capazes de definir três eixos prioritários para a atuação do núcleo: empreendedorismo, difusão tecnológica e propriedade intelectual. E por que esses temas? Porque já eram temas que estavam sendo debatidos no Brasil, durante eventos, encontros, reuniões, seminários. Então, por isso, essas foram as prioridades para o Nuemp. Mas, efetivamente, não tínhamos, como eu disse, estrutura. O trabalho, portanto, foi de sensibilização interna da comunidade universitária sobre esses temas. Mas, também, realizamos eventos, com a participação de outras universidades federais e, também, com a nossa comunidade. 

Pergunta: É o início da Agência de Inovação, certo?
Ana Torkomian: Sim, é verdade. Em 2001, eu assumi a Diretoria da Fundação, a FAI UFSCar. E na Fundação, encontro, sobretudo no início, quando acumulei a coordenação do Nuemp e a diretoria-executiva da FAI UFSCar, a infraestrutura que eu não tinha no núcleo UFSCar-Empresa. No Nuemp, concentramos o trabalho nas iniciativas para fomento do empreendedorismo e o apoio às empresas-juniores da Universidade, com a criação do primeiro condomínio do Brasil de empresas-juniores. E a parte da propriedade intelectual, que demandava um outro tipo de suporte, eu comecei a desenvolver na Fundação. Eu criei uma divisão na Fundação e começamos a proteger a propriedade intelectual da UFSCar, em articulação com as Pró-reitorias. A primeira regularização de propriedade intelectual aqui na UFSCar é de 2003, quando nós conseguimos fazer um trabalho de identificação de possíveis patentes, atendendo e assessorando docentes para realizar a proteção da propriedade intelectual. E outro elemento dessa história bastante interessante foi que a própria UFSCar contribuiu com a primeira versão da Lei da Inovação, de 2004, regulamentada em 2005 [Lei de Inovação Tecnológica é a Lei 10.973, de 2 de dezembro de 2004]. 
 
Pergunta: E como é olhar para esta Agência que agora completa 15 anos?
Ana Torkomian: Estou envolvida nessas questões desde o início. Estive à frente da criação de um fórum, que hoje é o Fortec [Fórum Nacional de Gestores de Inovação e Transferência de Tecnologia] , do qual hoje eu sou vice-presidenta, criado para apoiar e regulamentar, junto às universidades, a proteção da propriedade intelectual.  Este Fórum tem um papel político muito relevante. Na nova Lei da Inovação, de 2016, regulamentada em 2018, o Fortec teve um papel muito importante. A UFSCar e a Agência de Inovação estão totalmente presentes neste processo. A experiência da UFSCar é muito respeitada, muito reconhecida. Eu tenho muito orgulho de ser parte desta história, deste movimento. 

Pergunta: Para finalizar, ainda existe, no ambiente universitário, uma resistência em relação à atuação das Agências de Inovação, não há? Como é que você, a partir da sua trajetória, avalia este cenário? 
Ana Torkomian: Olha, você traz uma questão que tem algumas perspectivas a serem trabalhadas. Em primeiro lugar, eu preciso colocar uma máxima para a nossa existência, a existência das universidades enquanto instituições públicas. O conhecimento que produzimos precisa chegar à sociedade, precisa ser útil. Recentemente, enfrentamos a Covid-19 e as universidades tiveram um papel relevante, fundamental, inclusive de enfrentamento ao obscurantismo. Nas universidades, produzimos conhecimento, mas não são as instituições que vão se ocupar da produção em escala de produtos e serviços, de vacinas, por exemplo. Precisamos de parcerias, precisamos contar com o apoio de outras estruturas, de empresas, que vão, sim, lucrar, mas, de alguma forma, vamos fazer chegar à sociedade produtos de qualidade e, ainda, vamos gerar empregos. Por outro lado, estruturas como a nossa Agência de Inovação, ao realizarem o trabalho de proteção de propriedade intelectual, estão atuando para fortalecer, para assegurar a relevância das Universidades. Quando a gente protege a propriedade intelectual das universidades, evitamos que outras estruturas ou indivíduos se apropriem daquilo que é público. 

Foto: Analice Garcia/FAI