Pesquisa resolve paradoxo sobre líquido super-resfriado, vidro e cristal

QUINTA-FEIRA, 16 DE DEZEMBRO DE 2021 Pesquisa resolve paradoxo sobre líquido super-resfriado, vidro e cristal

Todos aprendemos que, abaixo de uma determinada temperatura - a temperatura de fusão -, líquidos solidificam (cristalizam). Mas esta não é toda a verdade. É possível, garantindo-se algumas condições, manter uma substância no estado líquido, inclusive a água, por exemplo, mesmo abaixo de sua temperatura de fusão (0 graus Celsius, no caso da água), gerando o que se chama de líquido super-resfriado.

Há, no entanto, um limite de temperatura abaixo do qual a matéria no estado líquido super-resfriado deve, necessariamente, seguir um de dois caminhos possíveis: cristalizar ou, em alguns casos, congelar temporariamente sem cristalizar, virando um vidro. É o que demonstram artigos publicados recentemente por pesquisadores do Centro de Pesquisa, Tecnologia e Educação em Materiais Vítreos (CeRTEV), sediado na UFSCar. O CeRTEV é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) apoiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

- Confira, neste vídeo de divulgação científica produzido pelo CeRTEV, uma ilustração do comportamento da matéria nos diferentes estados.

Neste tema, uma proposição teórica desafiadora foi publicada em 1948 pelo professor da Universidade de Princeton (nos Estados Unidos) Walter Kauzmann, no prestigiado periódico Chemical Reviews. Kauzmann indicou que, se um líquido super-resfriado pudesse permanecer neste estado em uma determinada temperatura - hoje denominada temperatura de Kauzmann -, sua entropia seria igual à entropia do mesmo material cristalizado. Teríamos, assim, uma situação inusitada - líquidos geralmente têm entropia maior que os cristais isoquímicos -, que ficou conhecida como Paradoxo de Kauzmann. O maior problema é que se esse líquido continuasse sendo resfriado, sua entropia eventualmente se anularia em uma temperatura acima de 0 Kelvin, o que contraria a Terceira Lei da Termodinâmica.

Assim, o próprio Kauzmann propôs a existência de uma temperatura limite para líquidos super-resfriados, que deveriam cristalizar antes de atingir a temperatura de Kauzmann. Porém, provar este enunciado experimentalmente é praticamente impossível, já que, nessa faixa de baixas temperaturas, os fenômenos que precisam ser observados e medidos - nucleação de cristais e relaxação estrutural - podem demorar intervalos de tempo de milhões de anos para acontecer.

"A pergunta, para equacionar o paradoxo, é: o que acontece com um material super-resfriado até a temperatura de Kauzmann? Continua líquido, vitrifica ou cristaliza? Esta é a pergunta, mas mesmo após cerca de 400 trabalhos científicos sobre o tema, ninguém conseguiu medir experimentalmente essas propriedades na temperatura de Kauzmann, para saber a resposta", explica Edgar Dutra Zanotto, coordenador do CeRTEV e do Laboratório de Materiais Vítreos (LaMaV) da UFSCar.

O que os pesquisadores do CeRTEV fizeram foi utilizar a técnica de simulação computacional chamada de Dinâmica Molecular e, assim, mostrar, para duas substâncias - o germânio e o selenieto de zinco -, que a cristalização de fato acontece em uma temperatura bem superior que a temperatura de Kauzmann. "Com a Dinâmica Molecular, conseguimos ir diminuindo a temperatura e aferindo, em cada temperatura, quais os tempos para cristalizar e para o líquido super-resfriado relaxar e continuar líquido. Assim, para cada material, chegamos a temperaturas em que os líquidos cristalizam antes de relaxar, e estas temperaturas estão acima das respectivas temperaturas de Kauzmann. Portanto, o paradoxo está resolvido para esses materiais", continua Zanotto. 

"Confirmamos, assim, para o germânio e para o selenieto de zinco, que o paradoxo não existe, porque esses líquidos não conseguem chegar à temperatura de Kauzmann; durante o resfriamento eles cristalizam antes de chegar lá", atesta o pesquisador. Ele conta que estão realizando simulação similar também para a água, mais complicada devido à complexidade da molécula. Segundo Zanotto, para que o paradoxo seja definitivamente derrubado, é preciso que outros pesquisadores alcancem resultados semelhantes para algumas outras substâncias.

Além da relevância teórica do estudo, o conhecimento produzido guarda potenciais aplicações, já que há algumas aplicações importantes para os líquidos super-resfriados, como a conservação de órgãos para transplantes, e também fármacos, e vírus, que ficam ativos em apenas um dos estados, amorfo (que é o estado dos líquidos super-resfriados e vidros) ou cristalino.

Ao comentar como o paradoxo o intrigava desde o final dos anos 80, já que todos os líquidos usados para a fabricação de vidros (sua área de pesquisa) podem ser super-resfriados, Zanotto faz uma reflexão sobre o processo de produção do conhecimento científico. "Esta é a função das Ciências Naturais: entender, descrever e prever fenômenos. Nós conseguimos entender como funciona os processos de nucleação de cristais e relaxação estrutural, calcular as velocidades, as dinâmicas, e verificar que os tempos de nucleação e relaxação se cruzam acima da temperatura de Kauzmann, ou seja, que abaixo dessa temperatura limítrofe um líquido super-resfriado não consegue relaxar antes de cristalizar, isto é, ele cristaliza antes de chegar à temperatura que caracterizaria o paradoxo", sintetiza.

Dois artigos foram publicados a partir dessas pesquisas, e um deles foi destaque na edição de novembro do Boletim da Sociedade Brasileira de Pesquisa em Materiais (SBPMat). Intitulado "Unveiling relaxation and crystal nucleation interplay in supercooled germanium liquid". O artigo, publicado no periódico Acta Materialia, é assinado pelo pesquisador de pós-doutorado (com bolsa da Fapesp) Azat O. Tipeev; José Pedro Rino, docente do Departamento de Física da UFSCar; e Zanotto.

O outro artigo, intitulado "Relaxation, crystal nucleation, kinetic spinodal and Kauzmann temperature in supercooled zinc selenide", foi publicado no periódico Computational Materials Science, com autoria da pesquisadora de pós-doutorado (também com bolsa da Fapesp) Leila Separdar, Rino e Zanotto.

No episódio 20 do podcast Ciência UFSCar, produzido pelo Instituto da Cultura Científica da UFSCar, a jornalista Mariana Pezzo conversa com Edgar Zanotto sobre esses estudos. O episódio estreia nesta sexta-feira (17/12), nos principais tocadores de áudio e na área de podcasts do site da Rádio UFSCar 95,3 FM.